A banda Arandu foge do padrão do heavy metal, com mulher no vocal, negro na bateria e músicas em tupi-guarani
Foto: Divulgação
Mas o clima de paz dura pouco.
Instantes depois, a cantora de voz angelical solta um longo vocal gutural (de tom grave e rouco) e chacoalha sua cabeça enquanto seus cabelos acompanham o movimento no ar.
Guiado pelas batidas de tambores indígenas, viradas frenéticas de uma bateria de dois pedais e uma sequência de riffs de guitarra compõem um som pesado.
O último álbum lançado pela banda tem uma música em português e também letras em xavante Foto: divulgação
A Arandu Arakuaa (Saber do Cosmos, em tradução livre do tupi antigo) é a primeira banda heavy metal a cantar na principal língua indígena brasileira.
Mas a vida não é nada fácil para os integrantes da banda dentro da cena do metal.
Preconceitos
O fundador, Zândhio Aquino, disse que chegou a fazer parte de algumas bandas em Brasília após deixar sua cidade natal no Tocantins, mas saiu de todas porque não conseguiu incluir a temática indígena em nenhuma delas.
"Eu cheguei em 2005 depois de me formar em pedagogia na federal do Tocantins, mas só três anos depois eu decidi fundar minha própria banda. Foi um processo muito longo e só em 2011 a gente chegou à formação que mantemos até hoje", conta.
Fundador da banda diz que alguns fãs se sentem constrangidos quando pedem autógrafo para a banda perto de amigos. Foto: Divulgação
Mesmo com um público fiel e certo espaço no mercado, Zândhio conta que a banda ainda é questionada com frequência por outros metaleiros.
"Encontrei resistência desde o início por causa da minha origem e meu compromisso de falar da cultura indígena. Muita gente não entende isso e acha que fugimos demais da essência do estilo", afirma.
Ele conta que até mesmo seus fãs sofrem essa resistência.
"Às vezes, tem um adolescente que quer falar com a gente, pedir autógrafo, e está com os amigos. E enquanto o fã é atendido pela gente, os amigos ficam longe, de braços cruzados, para demonstrar rejeição. Fica uma situação constrangedora tanto para a gente quanto pra ele", relata.
Negro, mulher e nordestinos
Mas a banda Arandu não foge dos padrões dos metaleiros apenas musicalmente. Ela também é considerada exótica por usar cores claras, em referência à floresta, e terem integrantes "fora do padrão".
"O forte da nossa vocalista é o gutural, uma técnica agressiva incomum para mulheres. Eu canto como um pajé, com voz mais rouca, e ainda temos um baterista negro. Além de mim, que nasci no Norte e sou descendente de índios, temos integrantes filhos de nordestinos. Tudo isso gera uma série de questionamentos por fugir do padrão do branquelo cabeludo", conta Zândhio.
Por outro lado, ele afirma que gosta dos questionamentos e debates gerados por essa singularidade da banda.
"Mas é uma via de mão dupla porque ao mesmo tempo em que as pessoas vão achar original, por outro há pessoas muito conservadoras ou que não têm ouvido musical para isso", afirma.
A cantora Nájila é especialista em fazer vocal gutural, uma voz rouca e grave incomum para mulheres. Foto: divulgação
Zândhio conta que o público, mesmo com uma certa rejeição à primeira vista, respeita muito a banda e se aproxima do palco para conhecer o som "e acaba ficando por lá". Ele relata que ainda assim mantém um bom relacionamento com todas as bandas do gênero e com o público.
"Já os produtores ainda são muito conservadores e medrosos. Eles têm medo de contratar a banda e o público não ir, mas é o contrário", afirma.
Os integrantes da banda, fundada a partir da amizade de seus integrantes a partir do extinto Orkut, fazem pinturas corporais e usam botas, ao invés de coturnos.
Essência
O líder da Arandu conta que criou sua própria guitarra de dois braços para viabilizar a constante troca de ritmos das músicas da banda. "O braço superior é uma viola caipira, que traz o lado regional, e o de baixo é uma guitarra, o lado agressivo da banda. A intenção é surpreender e contrastar com o bonitinho e regional", explica.
O fundador da banda também toca uma guitarra com dois braços - a parte superior é uma viola caipira. Foto: Divulgação
As letras da banda falam principalmente do cotidiano das aldeias indígenas, rituais de passagem e lutas por terra. A intenção é relatar tudo isso de forma mística e poética para estimular a reflexão.
A banda lembra que são comparados com frequência com os também brasileiros do Sepultura. Zândhio afirma que eles gostam de Sepultura, mas que o CD Roots,dos irmãos metaleiros, tem referências indígenas apenas na capa do álbum e em uma de suas faixas.
O estilo musical usado pelo Sepultura no álbum é majoritariamente afro-brasileiro e isso ainda causa confusão nos fãs, diz.
A Arandu também faz questão de dizer que tem vontade, mas nunca tocou numa aldeia indígena por falta de dinheiro. Zândhi afirma que frequenta aldeias e tem contato direto com índios. Segundo ele, o retorno da parte deles é respeitoso e positivo.
"Eles sabem que minha avó é indígena, que eu morava perto de aldeias e sempre tive um contato estreito com o dia a dia deles. Desde criança, eu recorro à medicina baseada nas ervas, no próprio conhecimento indígena e de algumas comunidades quilombolas", relata.
O último CD lançado pela banda, em 2015, também inclui faixas em xavante e uma em português. Assim como nos álbuns anteriores, há a influência de death metal e trash, os estilos mais pesados do metal.
O mais difícil para os fãs é entender as letras da banda. O problema é que até mesmo alguns sites especializados em letras de música não reconhecem as traduções por entender que o tupi-guarani é uma "língua que não existe" - nem mesmo quando Zândhio tenta incluí-las pessoalmente.
A solução encontrada pela banda foi legendar todos os clipes no YouTube.
"Isso é muito engraçado, porque nossos fãs costumam mandar e-mail dizendo que não conseguem achar as letras e traduções. Nós temos um arquivo com todas elas e temos o maior prazer de enviar para todos eles", diz Zândhio sorrindo.
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