No mês passado, o Ministério Público do Rio de Janeiro pediu a proibição do lançamento nacional de Mein Kampf, obra que começou a ser escrita por Hitler enquanto esteve na prisão. 

Parece consenso que a intenção do MPE não é ruim. O objetivo é impedir a proliferação de ideias nazistas em pleno século XXI – uma motivação bastante plausível. E é bem por isso que a ação representa um imenso equívoco 

 
Murilo Cleto, Revista Fórum

Na sua Introdução a uma vida não-fascista, que prefacia O Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, o filósofo Michel Foucault lista uma série de princípios para, segundo ele, uma “arte de viver contrária a todas as formas de fascismo”. “Não caia de amores pelo poder” é um deles. De acordo com Foucault, não se trata apenas de eliminar o fascismo histórico de Hitler e Mussolini, mas aquele “que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora”.

A preocupação de Foucault tem fundamento. De todas as doutrinas políticas forjadas pela contemporaneidade, o fascismo é a menos política de todas. Quer dizer, antes de ser político, o fascismo foi um movimento sanitário e até artístico. Em Arquitetura da Destruição, o cineasta Peter Cohen demonstra como o discurso cientificista do nazismo construiu uma narrativa que soube cruzar velhos preconceitos com novas teorias estéticas. E vez ou outra ele está às portas como solução para as mais diferentes crises que regimes politicamente liberais têm enfrentado desde o fim da Segunda Guerra. Mas não é preciso ir muito longe: o apreço pelo poder e pela “hierarquização piramidal”, como sustenta, nos faz verdadeiros fascistas em potencial. No limiar do século XX, Freud já dizia que democracias são exceção – e não regra – na história das civilizações.

No dia 29 de janeiro, o Ministério Público do Rio de Janeiro abriu uma ação cautelar que pedia a proibição do lançamento nacional Mein Kampf, obra que começou a ser escrita por Adolf Hitler enquanto esteve na prisão, antes de tornar-se o fürer que liderou um dos mais brutais genocídios de toda história. Com os 70 anos de sua morte, o título entrou em domínio público e passou a ser cobiçado pelas editoras. A decisão judicial foi favorável ao MPE-RJ e ainda estipulou multa de R$ 5 mil para quem desrespeitá-la.

Parece consenso que a intenção do MPE não é ruim. O objetivo é impedir a proliferação de ideias nazistas em pleno século XXI – uma motivação bastante plausível. E é bem por isso que a ação representa um imenso equívoco. Em primeiro lugar, porque a obra pode ser facilmente encontrada online e a plataforma nas livrarias seria só mais uma delas. Em segundo, porque a decisão abre um precedente terrível sobre outros autores frequentemente – e nem sempre com razão – associados à barbárie. Com a ascensão de uma vigilância cada vez mais acirrada em torno de uma ideia bem ruim de “ideologia”, não seria de se estranhar caso autores como Gramsci e Beauvoir também tivessem suas obras censuradas por seguidores do movimento Escola Sem Partido e afins. Em terceiro, porque a proibição não produziria outro efeito senão o aumento da procura da obra, alimentando ainda mais teorias conspiratórias revisionistas que transformam nazistas em vítimas.

Em quarto lugar, e talvez mais importante, é preciso considerar que um pressuposto nocivo circunda a experiência totalitária nazifascista do século XX: o de que ela foi uma espécie de acidente na história do mundo. E não foi. Hitler costuma ser pintado como uma figura monstruosa, louca, até esquizofrênica, para limpar a barra da humanidade neste lamentável capítulo de sua trajetória. E poucas coisas são tão nocivas para a extinção do fascismo, inclusive deste que Foucault alertou estar em todos nós, do que este isolamento, historicamente desonesto e politicamente irresponsável.

Talvez uma das cenas mais chocantes de A Queda, longa metragem alemão sobre as últimas horas de Hitler no apagar das luzes do conflito contra os Aliados, seja quando o casal Goebbels decide tirar a vida dos próprios filhos com morfina e cianureto porque eram “bons demais” para habitar um mundo com o nazismo derrotado. A sequência atordoa espectadores não por causa da frieza da mãe, que é quem os envenena, mas justamente pelo poder que aquela convicção exerceu diante de uma ação tão difícil, mesmo para supremacistas. Por essas e por outras, A Queda é um filme necessário para desconstruir a embalagem desumana com que nazistas costumam ser envoltos e apresentados aos contemporâneos.
 
 
 
 
Fonte: Pragmatismo Político