Em sua recente coluna, Ancelmo Góis falou de uma ganância desmedida que parece dirigir os empresários brasileiros, em particular os cariocas, como se o nosso capitalismo fosse excepcionalmente ganancioso. O sentimento geral por ele percebido é o de que o consumidor age como se estivesse fazendo um favor ao empresário ao usar determinado estabelecimento ou serviço e o dono do negócio, um “vampiro gargalhando ao fechar o caixa no fim do dia”, lhe concedesse a honra de usar sua magnânima casa. Ao contrário da lógica capitalista tradicional segundo a qual “o consumidor é soberano”, o único soberano no capitalismo brasileiro parece ser o patrão.
Ancelmo enxergou um sintoma e o tomou como causa. Três ou quatro anos atrás, quando o ex-presidente Lula questionou alguns grandes empresários em palestra perguntando “se nós somos um país de economia capitalista por que é que a gente não adota uma política capitalista para este país?”, ele mirou mais certo do que Ancelmo, tocando em um ponto fundamental na constituição da mentalidade empresarial brasileira: a elite brasileira é tão retrógrada que rejeita fundamentais pilares constituintes do capitalismo moderno.
Num país de herança colonial e imperial, com um poder legítimo constituído principalmente por herdeiros dos nobres fugidos exatamente do “constitucionalismo imposto à força” por Napoleão na França revolucionária, a mentalidade formadora do capitalismo moderno brasileiro não apagou traços culturais da nobreza e do ”sangue-azul”. Na economia feudal pré-constitucionalista, a propriedade e por extensão o poder constituem um privilégio inquestionável (divino); assim, o nobre, em sua “infinita bondade”, concede aos plebeus e servos o privilégio de uso de suas legítimas posses (a terra). Não há a cultura do direito liberal da igualdade dos homens acima de tudo: a elite brasileira não gosta do “Império da Lei”.
Um dos princípios básicos da revolução liberal burguesa, exemplificada pela Revolução Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789, mas também pelas inúmeras revoluções europeias de 1848, era o de que a Lei era universal e aplicável a todos os cidadãos: todos são iguais perante a lei. Esse discurso era fundamental porque se chocava radicalmente contra a lei personalista e, portanto, variável e discricionária do Antigo Regime. Em regimes nobiliárquicos, as relações pessoais e de parentesco, “quem você conhece e qual sua relação com a autoridade local”, são peça fundamental no funcionamento do Estado e da sociedade. Se você é ”amigo do Rei”, você está feito.
Não é preciso ser clarividente para ver que no Brasil, até os dias de hoje, as relações pessoais e de parentesco são mais importantes que a própria lei. A “palavra” está acima da lei e, mais do que isso, a posição social do indivíduo na hierarquia social e suas relações com outras pessoas de igual estrato determinam não apenas o quanto a lei “se aplica a ele”, mas também o acesso aos diversos recursos e privilégios que o próprio Estado pode conceder, uma clássica relação pré-constitucional de poder. A frase eternizada pelo filme Tropa de Elite, “quem quer rir, tem que fazer rir”, é uma norma extremamente real. A troca de favores “entre iguais” é fundamental para o funcionamento da vida pública. Conhecemos outros termos ainda, como o QI – “quem indica”, o jabá da indústria musical, o nepotismo, os favorecimentos e o tratamento especial sempre dado na base da amizade – são traços facilmente identificáveis da cultura brasileira. A famosa frase do ditador peruano Oscar Benavides “aos meus amigos: tudo, aos inimigos: a lei” resume em linhas gerais a nossa principal regra.
Fonte: Pragmatismo Político
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