A exemplo de outros nomes que posteriormente se tornariam grandes ídolos brasileiros do setor cultural, o cantor/compositor Geraldo Vandré também nunca foi muito chegado aos bancos escolares.

No tempo em que estudou em Pernambuco, o autor de Caminhando chegou mesmo a ser reprovado. Aconteceu no início da década de 1950, depois que Vandré deixou a cidade onde nasceu (João Pessoa, na Paraíba) e veio cursar a segunda série ginasial no Ginásio São José, em Nazaré da Mata, a 65 km do Recife.

Essa nova faceta da vida estudantil de Vandré (a repetência de um ano) só veio à tona quando a nossa equipe do Pernambuco de A/Z localizou a histórico escolar do compositor. 

Os documentos (a transferência do Colégio Estadual da Paraíba e a ficha individual do aluno no Ginásio São José) estiveram sumidos durante o regime militar e reapareceram misteriosamente. 

Hoje, estão no Departamento de Acompanhamento e Registro Escolar, da Secretaria Estadual de Educação, no Recife.

Filho de classe média (seu pai foi o primeiro médico otorrinolaringologista da Paraíba), Geraldo Vandré, ou Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, seu nome de batismo, foi mandado para Pernambuco porque não ia bem nos estudos, em sua cidade natal.

Chegou a Nazaré da Mata aos 14 anos de idade, em julho de 1949. A esperança da família era a de que, num internato, como era o caso do Ginásio São José (mantido pela diocese do município), o garoto tomasse jeito e levasse os estudos a sério.

Mas, não foi isso o que aconteceu. Como demonstra a ficha individual de Geraldo Pedrosa de Araújo Dias no Ginásio São José, o jovem aluno continuou sem grande interesse pelos estudos e acabaria por perder o ano.

Do histórico escolar de Vandré em Pernambuco consta, por exemplo, que em apenas duas disciplinas ele se empenhou a ponto de obter notas altas: foram o canto orfeônico e desenho. Em todas as demais matérias, o desempenho do estudante hoje famoso foi simplesmente decepcionante.

O curso ginasial, naquela época, constava de dez disciplinas, com seis provas mensais, num total de 60 provas ao ano. Em 31 dessas provas (mais da metade), Geraldo Vandré obteve nota abaixo de 5,0. O pior resultado foi em inglês, com média final de 1,7 e nenhuma nota mensal acima de 3,0. Em latim, o aluno terminou o ano com média 3,3. Em francês a média anual ficou em 3,6 e em matemática não passou de 3,7. As notas máximas (10,0) só ocorreram em quatro ocasiões: nos meses de março e agosto, em canto e desenho.

Resultado: com rendimento tão baixo, ao final do ano Vandré obteve nota global 5,6 e ficou no que hoje chamamos de recuperação (antigamente, dizia-se segunda época). Feitas as provas da chamada segunda época, a média global do aluno permaneceu 5,6 e, para decepção dos seus pais, ele foi reprovado. Este fracasso escolar inicial (pois ele acabaria formado em Direito, no Rio de Janeiro, em 1961) tinha uma explicação: é que, desde pequeno, Geraldo dizia que queria ser cantor de rádio e vivia matando aulas.

As fugas da sala de aulas eram tantas que, apesar da condição de interno do Ginásio São José, ainda assim Vandré conseguiu faltar 94 das 585 aulas ministradas em 1950.

No ano anterior, antes de vir para Nazaré da Mata, a debandada fora maior: deixou de assistir 57 das 244 aulas ministrada até o mês de julho no Colégio Estadual da Paraíba, índice de faltas superior a 23% em apenas meio ano letivo. Enquanto estudou no Nordeste, só em duas disciplinas Vandré sempre teve boa frequência: canto e trabalhos manuais.

Depois da desastrada experiência pernambucana, Geraldo Pedrosa de Araújo Dias mudou-se para o Rio de Janeiro, onde concluiu seus estudos e onde montou base para se tornar Geraldo Vandré, um dos grandes nomes da música popular brasileira contemporânea. O Ginásio São José foi vendido pela Igreja e, atualmente, o seu prédio abriga uma escola da rede municipal de ensino.

Para menores de 40 anos

O fenômeno Vandré: Glória e silêncio

Geraldo Vandré tornou-se nacionalmente conhecido como cantor e compositor em 1966, quando sua canção "Disparada" (feita em parceria com Téo Barros) dividiu com "A Banda", de Chico Buarque de Hollanda, o primeiro lugar no II Festival de Música Popular da TV Record.

Em seguida, Vandré seria transformado num dos mais festejados ídolos da história da música popular brasileira: foi em1968, quando sua composição "Caminhando" ou "Pra Não Dizer que Não Falei de Flores", apesar de ficar em segundo lugar no Festival Internacional da Canção, conquistou o público brasileiro, sobretudo os estudantes.

Naquela época, o Brasil vivia tempos agitados de manifestações em defesa da liberdade e "Caminhando" (que fala de soldados marchando sem razão para viver) logo virou uma espécie de hino da esquerda que sonhava com o fim ditadura militar. E Geraldo Vandré, com suas músicas de protesto, foi transformado num porta-voz da tristeza nacional, virou mito, reunindo multidões onde quer que se apresentasse. Mas, esse período de glória durou pouco. Primeiro, "Caminhando" foi censurada (sob a alegação de ser uma ofensa às Forças Armadas) e o compositor passou a enfrentar vários problemas em seus shows. Depois, quando o governo decretou o AI-5, a 13 de dezembro de 1968, Vandré seria forçado a deixar o País.

Foi no carnaval de 1969 que Geraldo Vandré fugiu do Brasil para viver no exílio. Permaneceu quatro anos e meio fora e, em 1973, retornou ao País. E a partir de então iniciou o seu silêncio. Nunca mais se apresentou para o público brasileiro e não quis mais saber de suas músicas (um total de cinquenta canções compostas no Brasil e oito gravadas em Paris). Passou a viver como advogado (sua profissão formal) aposentado pela Sunab. Desde que voltou, o único show de Vandré aconteceu em Puerto Strossner, no Paraguai, em 1985. Além disso, no mesmo ano apresentou, com cadetes da Academia Militar de Pirassununga, o poema sinfônico "Fabiana", que compôs em homenagem à Força Aérea Brasileira. Questionado, nunca explicaria tal homenagem.

Para os seus antigos admiradores da esquerda, assim Geraldo Vandré passava, definitivamente, de herói a vilão. Definitivamente porque, antes, o compositor já havia homenageado a Marinha com a canção "Marinheira", que o cantor Ney Matogrosso incluiu num show. E porque o próprio retorno de Vandré ao Brasil fora considerado suspeito. Depois de várias negociações de sua família com as autoridades brasileira, Vandré voltou ao País a 17 de julho de 1973 e passou um mês sendo interrogado numa unidade do I Exército, no Rio de Janeiro. A 21 de agosto, como se estivesse chegando naquele momento, Vandré desembarcou em Brasília, e numa entrevista à TV, afirmara que retornava numa nova realidade, para fazer apenas "canções de amor e paz".

Durante o regime militar, Geraldo Vandré nunca chegou a ser preso nem torturado, fugiu antes que a polícia chegasse ao seu apartamento. Nos primeiros meses seguintes a sua volta do exílio, ainda tentou retomar a carreira. Mas, fosse no Rio de Janeiro ou em São Paulo, quando ele chegava numa mesa de bar, as pessoas ia saindo discretamente. Chegou a gravar uma participação para o Fantástico e outra para o Programa Flávio Cavalcanti (da extinta TV Tupi), mas nenhuma foi ao ar. Passou, então, a andar anonimamente pelas ruas de São Paulo, iniciando o que chamou de "viver exilado no meu próprio País". Preservou pouquíssimos amigos e muita gente acreditava que ele havia enlouquecido.

Numa das raras entrevistas após voltar ao Brasil, em 1991 Vandré falou do seu silêncio: "Além de precisar de motivos para cantar, sei também que é preciso, às vezes, não cantar. De algum modo, o silêncio é parte da minha canção." Sobre o show no Paraguai, o jornal Folha de São Paulo escreveu: "Itaipu Binacional, Puerto Strossner, Salon Social, Area Dos. Geraldo Vandré vai para o lado direito do palco, empunha o violão, entra em posição de sentido. Na frente de uma bandeira do Brasil, hasteada sobre a mesa, começa a cantar Caminhando. Está de costas para o público, uma plateia de 120 pessoas. No meio da música, recita versos que falam em 'o que fizeram de ti bandeira?' Termina de cantar quase chorando, beija a bandeira e encerra o show."

Depois disso, só em setembro de 2010 Geraldo Vandré voltaria a falar de sua vida, numa entrevista concedida ao repórter Geneton Moraes Neto, veiculada na Globo News. Mas, durante quase uma hora de conversa pouco acrescentou além do que já se sabia sobre ele e os polêmicos episódios do seu retorno ao Brasil.

Azevedo: último parceiro narra a fuga

O hoje famoso compositor Geraldo Azevedo, no final da década de sessenta ainda era apenas um integrante do conjunto que acompanhava Geraldo Vandré e foi uma das poucas pessoas que mantiveram contato com o ídolo até poucos instantes antes da fuga.

Vem desse período, inclusive, a única música que os dois compuseram juntos ("Canção da Despedida"), feita quando Vandré preparava-se para deixar o Brasil. Azevedo não partiu para o exílio, preferiu correr o risco de ficar no País, e depois contaria como se deu a partida do autor de "Caminhando".

De acordo com Geraldo Azevedo, Vandré e o seu conjunto, o Quarteto Livre, haviam iniciado uma temporada no Teatro Opinião, Rio de Janeiro, com o show "Pra não dizer que não falei de flores". Houve tumulto, a censura interditou a canção "Caminhando" e o grupo resolveu partir para uma turnê pelo País. Estavam em Anápolis, Goiás, no dia 13 de dezembro de 1968, quando o governo militar baixou o Ato Institucional número 5 (AI-5). Azevedo conta o que ocorreu naquele dia:

- Vandré ficou louco, não sabia o que fazer e o medo dele ser preso nos fez cancelar o espetáculo marcado para o Iate Clube, em Brasília. Aí, tomamos o caminho de volta para o Rio.

No Rio de Janeiro, Vandré entrou na clandestinidade. Passou um mês escondido na casa de dona Aracy Carvalho (viúva do escritor Guimarães Rosa). Pouquíssimas pessoas sabiam do seu esconderijo. Conta Geraldo Azevedo: "Para ir lá, eu tinha de entrar num carro, mudava pra outro, fazia tudo para não deixar pistas para os agentes da repressão que, por acaso estivessem me seguindo". Foi na casa de Aracy que os dois Geraldo começaram compor a "Canção da Despedida", só concluída na casa da atriz Mariza Urban (que era namorada de Vandré).

Foi da casa de Mariza Urban que Vandré partiu para o exterior. "O plano de fuga, diz Geraldo Azevedo, seria por terra, uma vez que Vandré achava muito perigoso sair do Brasil por avião; ele atravessaria a fronteira escondido num banco traseiro de um automóvel". Até hoje, porém, ninguém sabe se tudo aconteceu dessa forma. Vandré foi embora, viveu quatro anos e meio entre o Uruguai, Peru, França e outros países. Depois que voltou ao Brasil, nunca falou sobre o assunto.

De toda a história da fuga, de concreto ficou apenas a "Canção da Despedida", posteriormente gravada por Geraldo Azevedo.

Advogado, filho de comunista

Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, ou Geraldo Vandré, nasceu a 13 de setembro de 1935, em João Pessoa, capital do Estado da Paraíba. Filho do médico José Vandregísilo de Araújo Dias que em 1946 foi eleito deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), àquela época na legalidade.

Depois que o seu pai foi cassado em 1947, Vandré viveu um ano num internato no interior de Pernambuco e, depois, foi morar com a família no Rio de Janeiro, onde frequentou o curso clássico no Colégio Juruena, em Botafogo.

Nos tempos de colegial, Vandré já pretendia ser cantor. Usava o pseudônimo de Carlos Dias, em homenagem ao seu grande ídolo Carlos José, cantor romântico dos anos 50. Tinha aulas de violão com um desconhecido professor baiano, João Gilberto, que depois se tornaria o "papa" da Bossa Nova. Professor e aluno até pensaram em iniciar a carreira juntos, fizeram planos para começar tocando e cantando em boates. Mas o plano fracassou porque a família de Vandré exigiu que ele estudasse Direito.

Geraldo Vandré formou-se advogado no iníco dos anos 60. Além do diploma cobrado por sua mãe, dona Maria Marta Pedrosa Dias, foi na faculdade que Vandré realmente deu início a sua carreira artística. Participando dos movimentos estudantis, passou a integrar o Centro Popular de Cultura (CPC), onde acabou conhecendo o seu primeiro parceiro: Carlos Lyra, com quem compôs a canção "Quem quiser encontrar o amor". Do Rio de Janeiro, Vandré foi para São Paulo, onde tornou-se cantor do João Sebatião Bar.

A partir de 1966, Geraldo Vandré começava uma bem sucedida série de participações em festivais, conquistando o primeiro lugar no II Festival de Música Popular da Excelsior, com a canção "Porta-Estandarte". Em seguida, sua música "Disparada" dividiu com "A Banda", de Chico Buarque, o primeiro lugar no II Festival de Música Popular da TV Record. A sua mais famosa e marcante composição, "Caminhando", surgiria em 1968, ficando em segundo lugar no Festival Internacional da Canção.

Criador de trilhas sonoras de filmes como "A Hora e a vez de Augusto Matraga", de Roberto Santos, e "Couro de Gato", de Joaquim Pedro de Andrade, até 1968 Vandré já havia gravado 50 fonogramas. Depois, na Europa gravou um LP ("Das Terras de Benvirá") com oito músicas e a partir de 1971 deixou de publicar comercialmente toda e qualquer obra de sua autoria. Enquanto esteve fora do Brasil, ganhou um festival de música no Chile, com a canção "Pátria Amada, Idolatrada, Salve, Salve".

Ao contrário do que muitos pensam, durante a ditadura brasileira Vandré nunca chegou a ser preso ou torturado. Soube, através de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que a polícia política estava a sua procura e fugiu. Também nunca enlouqueceu, como diseram alguns depois que ele, já de volta ao Brasil, fez duas canções louvando as forças armadas. No Chile, com crises depressivas, submeteu-se a tratamento psiquiátrico por 45 dias. Mas, como diz Hermeto Paschoal, seu ex-companheiro, Vandré "sempre foi meio esquisito".

Geraldo Vandré ficou fora do Brasil entre o carnaval de 1969 a julho de 1973. É ele quem conta: "Fui para o Uruguai, onde permaneci uma semana. Depois, passei seis meses no Chile. Fui, então, para a Argélia. Depois, passei pela Iugoslávia, pela Alemanha (onde gravei programas de TV), Grécia, e me fixei na França, por 18 meses." Em Paris, em 1971, apresentou numa igreja "A Paixão Segundo Cristiano", um auto em comemoração à Páscoa que depois seria mostrado no Brasil e registrado em disco.



Contos de Geraldo Vandré

"Não trago prendas

nem lembranças raras,

nem amuletos de festas guerreiras.

Os bens da vida reparti com todos

e muitos se perderam para que eu chegasse.

Vivi contigo as honras do meu tempo

sem moral, além das esperanças,

e parto agora porque tenho tempo

e aumentadas as minhas lembranças

levo a saudade, antiga companheira,

que contigo outra vez ficou criança,

não tenho mágoas, nem ricos presentes

para deixar-te, tenho confiança

do encontro marginal de outros amigos

que estarão comigo e na distância

me darão amor, calor e abrigo

para que eu possa me lembrar de ti

ser-te fiel e seguir teu amigo."

(do livro "Contos Intermediários de Benvirá" publicado em Santiago do Chile, junho de 1973, inédito no Brasil)

"Se o meu canto foi um dia

pretexto para o terror

porque somente sabia

bem livre falar de amor

perdão amantes feridos

por culpa deste cantor

perdoa povo querido

perdão amigos e amor"

(publicado pelo jornal Folha de São Paulo, 12/09/1985)



Fonte: Pe-AZ