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Reza a velha lenda da história da arte que Michelangelo, ao encerrar dois anos de trabalho esculpindo Moisés, hoje em exposição na Basílica de San Pietro in Vincoli, em Roma, bateu no mármore e disse: "Por que não falas?".
Convém ao escultor Ron Mueck evitar essa prática, sob o risco de que sua obra lhe responda. O australiano, protagonista da exposição que leva seu nome em cartaz na Fundação Cartier, em Paris, é um dos expoentes da escultura hiper-realista, movimento que parece reproduzir não só a forma humana, mas também a sua alma.
A corrente, nascida nos Estados Unidos dos anos 1950 e 1960, se inspirava à época em pintores americanos como Edward Hopper e também no Pop Art, mas radicalizava. O objetivo dos artistas que seguiram essa tendência era recriar a realidade, em especial a figura humana, em seus mais ínfimos detalhes, como o brilho do olhar ou a textura da pele e dos cabelos.
Até aqui, a referência na escultura dessa corrente era o americano Duane Hanson, morto em 1996, aos 70 anos. Seu trabalho mais célebre, Supermarket Shopper (1970), hoje no Museu de Budapeste, na Hungria, é uma reconstrução surpreendente - senão assustadora - da realidade. Ela se tornou o ícone de uma obra que revisitou o cotidiano de empregadas domésticas a boxeadores, de cowboys a vagabundos, passando até por vítimas de acidentes graves.
Hanson hoje tem em Mueck um de seus herdeiros artísticos - ainda que o australiano possa eventualmente não reivindicar essa linhagem. Além dos diferentes recortes da realidade, no entanto, os dois escultores exploram técnicas que os diferenciam. Hanson em geral trabalhava em escala natural, usando modelos vivos e o gesso como matéria-prima. Então recobria o resultado com poliéster, fibras de vidro, tinturas, pelos humanos, roupas e acessórios reais - em uma ilusão do real.
Mueck opta por uma técnica ainda mais artesanal, por realizar esculturas que fogem da escala humana. Seus personagens são ou minúsculos, ou gigantes, o que sob certos aspectos amplia o desafio da escultura. Para forjar seus objetos, o australiano usa estruturas de metal, cobertas por placas de madeira, depois por camadas de argila que lhe permitem esculpir os menores detalhes da forma humana. Os moldes dão origem à peça a ser trabalhada com texturas que a aproximarão do orgânico, por meio do uso de silicone, resina de poliéster e da pintura a óleo.
Essa habilidade foi desenvolvida ao longo de duas gerações. Mueck é filho de pai e mãe fabricantes de brinquedos e bonecas. Sua vida profissional começou sob essa influência, trabalhando em modelos de marionetes para a televisão e para o cinema, primeiro em sua Austrália natal, depois em Los Angeles e enfim em Londres, onde se radicou. Traços de seus trabalhos estão, por exemplo, em filmes como Labirinto - A Magia do Tempo (1986), de Jim Henson, ou no histórico Muppet Show. Depois do audiovisual, Mueck passou ao mundo publicitário ao criar em 1990 uma empresa de produção de manequins para fins fotográficos.
A passagem à arte aconteceu só oito anos mais tarde, com o auxílio de sua sogra, a artista plástica portuguesa Paula Rego, que lhe apresentou ao colecionador Charles Saatchi, um de seus mecenas na escultura.
A repercussão de seu talento como escultor hiper-realista veio a seguir. Já em 2001, teve seu sucesso reconhecido pela Bienal de Veneza. Em 2002, vendeu um de seus mais badalados trabalhos, Mulher Grávida, à National Gallery da Austrália.
Em comum com Hanson - e talvez com boa parte dos hiper-realistas -, Mueck tem a relação que estabelece com seu público. No hiper-realismo, há uma espécie de jogo de percepção entre o artista e seu espectador, talvez até entre o artista e sua escultura. É como se cada personagem esculpido ganhasse vida própria e passasse a contar sua história. As peças de Mueck parecem fazer um esforço para não transmitir nenhuma informação suplementar ao público, o que deixa o campo livre ao visitante para a interpretá-la de forma pessoal.
Esse é o caso das principais esculturas apresentadas na mostra da Fundação Cartier, que seguirá em cartaz até 29 de setembro. Entre as obras, as mais intrigantes talvez sejam Woman With Shopping e Couple Under an Umbrella, dois retratos ordinários do cotidiano feitos em 2013.
"O que é muito forte no trabalho de Mueck é que cabe ao espectador concluir a obra, atribuindo a cada personagem sua leitura", explica a italiana Grazia Quaroni, crítica de arte, conservadora da Fundação Cartier e comissária da exposição.
Depois de cruzar com a exaustão e as olheiras profundas da personagem de Woman With Shopping, talvez Mask II e Woman with Sticks e Drift, as duas de 2009, não sejam tão impactantes. Ainda assim, as peças testemunham a habilidade singular de Mueck e uma porta aberta para a descoberta da hiper-realidade.
Por Andrei Netto/O Estado de São Paulo